domingo

A Felicidade nos Pequenos Momentos


 Texto enviado por Nicole Glock Maceno

 Aquela tarde de outono estava toda colorida e iluminada. A essa época do ano, isso era quase uma raridade na cidade de Curitiba. Aproveitando a beleza do dia, tinha saído em companhia do meu irmão, para pagar algumas contas.
Estávamos no centro da cidade, quando já tinha pagado as contas e saíamos de uma loja de roupas, na Rua XV. Nesse momento, uma cena que poderia ser banal, atraiu minha atenção. Em frente à loja havia uma arquibancada montada, onde os técnicos ainda instalavam o som para algum evento que deveria estar prestes a começar, dada a correria da equipe.
Fiquei muito curiosa e detive-me por alguns instantes para ver o que estava por acontecer. Não me recordo a que pretexto o som estava sendo instalado, mas recordo-me de uma cena inusitada que marcou aquele momento.
Ao estilo dos anos noventa, começou a tocar dance music em um volume bastante alto. Nesse momento, reparei em um homem, que dançava em frente à arquibancada, usando jeans azul, uma blusa de cor clara e nos pés um tênis já todo estropiado. A contar pela sua aparência, com cabelos desgrenhados e roupas sujas, deveria ser morador de rua.
Empolgava-se com a música e parecia senti-la em cada movimento de seu corpo que acompanhava o ritmo. “Sacudia o esqueleto” com animação e um sorriso no rosto. A tarde fazia-se feliz e vibrante para aquele homem que sem posses nem preocupações desfrutava o momento presente.
Naquela época eu só tinha doze anos e me comovi com a cena. Dava-me tristeza ver aquelas pernas magras e altas, quase esqueléticas, que pareciam contar a história de uma vida sofrida, temperada por solidão e abandono.
O homem usava óculos de cor marrom com uma só lente revelando um ser despojado de toda a vaidade, mas não do seu orgulho e amor próprio. Ainda que tudo lhe faltasse, conseguia ficar alheio às adversidades e sentir prazer em viver.
Chorei naquele dia ao pensar em quão exigentes somos com nossa felicidade enquanto aquele homem apesar de tudo conseguia ser feliz levando uma vida simples e sem muitas esperanças, apenas vivida.



sábado

A Imigração



            Não cheguei pelo aeroporto Charles de Gaulle, mas pelo aeroporto de Orly. Segundo o corretor que me vendeu as passagens, Orly por ser menor e receber em grande parte os voos domésticos, tem o controle de imigração mais precário e, como eu não queria arriscar ter que voltar do aeroporto eu aceitei o conselho.
            Para chegar pelo aeroporto de Orly tive que comprar uma passagem até Lisboa, onde pegaria outro voo para Paris.
            O voo chegou no horário e quando desembarquei, em Lisboa, fui rapidamente direcionado para a alfândega que apesar da grande fila formada, não demorou a atender os passageiros com conexão. O agente apenas olhava a foto no passaporte e conferia a cara do sujeito antes de colocar o carimbo. Acho que eles não se preocupam muito quando sabem que o viajante não vai permanecer em Portugal e, essa era justamente a intenção; desembarcar na Europa sem aborrecimentos.
            Mais tranquilo por já estar com o passaporte carimbado, quando cheguei ao aeroporto de Orly, queria sair rapidamente. O conselho do agente de viagens ficava o tempo todo martelando em minha cabeça; “Ponha as malas em um carrinho ou, de preferência, pague um carregador, e vá direto para a porta de saída. Não fique caminhando no aeroporto para não chamar a atenção da imigração”.
            O conselho era ótimo e parecia muito simples, exceto pelo fato de que não vi nem um carregador de bagagens, tampouco carrinhos disponíveis e, para piorar, não fazia a menor idéia de onde era a saída. Mas não houve pânico, nestas situações sempre tento manter o autocontrole.
            Exatamente contrário a tudo o que me disse o agente de viagens, saí pelo aeroporto olhando para todos os lados, com a mão direita arrastando uma mala gigante, com uma jaqueta de couro pendurada naquele espaço onde se põe jornais e, na outra mão uma pasta onde levava documentos, escova de dente e outros artigos de higiene.
            Depois de subir equivocadamente uma escada e descê-la novamente, acabei localizando a saída que dava acesso aos ônibus. Teria sido bem mais simples pegar um táxi do outro lado, mas eu ainda não sabia como seria minha estada e achava importante economizar para alguma emergência.
            Eu atravessava o saguão do aeroporto quando, saída não sei de onde, apareceu à minha frente uma jovem senhora, com cabelos cortados ao estilo masculino e me disse “Boa Tarde” em francês, com um grande sorriso.
            Era meu primeiro contato com um nativo e eu queria estrear logo o meu francês, por isso fiquei muito feliz ao receber aquele cumprimento, mas muito curioso para saber o motivo daquela abordagem. “Será uma vendedora ou promotora?” Não precisei esperar pela resposta porque ela logo me mostrou um crachá e se apresentou como agente da alfândega. Imediatamente minha felicidade foi mergulhada num balde de água fria.
            Ainda toda sorridente, ela me perguntou se eu tinha algum valor a declarar. Sem saber exatamente a que quantidade ela se referia, contei-lhe que em dinheiro eu tinha pouco mais de oitocentos euros, dinheiro que eu acreditava que fosse o suficiente para as despesas de quatro dias em Paris.
            Parece que ela não se interessou pelo dinheiro, mas me pediu o passaporte, o bilhete de viagem e começou aquelas perguntas de praxe; “qual a sua origem?”, “qual o motivo de sua viagem?”, “quantos dias pretender ficar?”, “em qual hotel?”.
            O agente de viagens já tinha me prevenido para essa situação, por isso eu já tinha respostas prontas para todas as perguntas, mas sempre há algumas armadilhas.
         Quando eu disse que minha procedência era Curitiba, ela contestou que meu voo partiu de São Paulo, por isso tive que lhe explicar que não consegui voo direto de Curitiba. Quando lhe disse que pretendia ficar quatro dias ela argumentou que o bilhete de retorno estava marcado para um mês de depois. Com a maior cara de pau do mundo, eu disse que tinha comprado uma passagem em promoção e as datas já vinham pré-agendadas, mas que eu pretendia remarca-la pagando apenas uma pequena taxa.
            Até aí ela parecia satisfeita com as respostas, mas não se convenceu quando eu lhe disse que tinha apenas o endereço do hotel, mas não a reserva, porque a passagem tinha sido adquirida na véspera e os hotéis só aceitavam reservas com no mínimo quarenta e oito horas de antecedência. Isso era verdade e o agente de viagens me preveniu quanto a este problema, por isso ele me deu o endereço e o mapa da localização do hotel para que eu pudesse mostrar e dar mais força à minha argumentação. Mas ela não se convenceu e me convidou para acompanhá-la até uma sala, a terrível sala.
            Eu já começava sentir a tristeza de não poder entrar na França e ter que voltar do aeroporto, depois de tantos sonhos, gastos e meu emprego perdido. Eu tinha acabado de pedir demissão. “Mas nem tudo está perdido, eu tenho que continuar com ‘sangue frio’ e não me contradizer!”.
            A sala era pequena, tinha uma mesa no centro e um balcão com um computador ao lado da porta. Dentro da sala havia mais dois agentes.
            Um dos agentes refez todas as perguntas que eu já tinha respondido, enquanto a primeira agente acompanhava com atenção, acredito que para ver se eu diria algo diferente. Tomei cuidado para falar exatamente o que tinha dito a ela. Do outro lado da sala um dos agentes, com meu passaporte nas mãos, consultava o computador.
            Pediram para que eu tirasse os sapatos e as meias e, virasse os bolsos da calça ao avesso. Fiquei constrangido com isso, sobretudo quando o agente me revistou e apalpou todo meu corpo dos pés à cabeça, mas achei melhor fazer tudo com naturalidade e evitar maiores complicações.
            Ainda não satisfeitos, pediram que eu colocasse a mala e a pasta sobre a mesa e as esvaziasse para que pudessem ver todo o conteúdo.
            O agente examinava o forro da minha mala e eu perguntei por quê? Ele foi bem direto; “estou procurando drogas”.
A mulher observava cada item da minha bagagem. Pegou dois pacotes de biscoitos recheados e, com a ajuda de um estilete, cortou-os ao meio e espalhou o conteúdo sobre a mesa. Olhou atentamente um frasco de perfume e aproximou-o ao nariz, mas não pressionou a válvula. Deparou-se com um rolo de fita adesiva e quis saber para quê servia.
            Confesso que foi uma grande ingenuidade de minha parte levar fita adesiva, muitos traficantes (mulas) usam fitas para prender drogas ao corpo. Acontece que eu tinha comprado algumas roupas novas para minha viagem e, entre estas, uma calça jeans que ficava muito longa para mim. Como não havia tempo para fazer as barras eu pensei em usá-las dobradas e a fita adesiva seria para fixá-las por dentro e evitar que se soltassem. Pensei em usar assim até que pudesse fazer as barras.
Expliquei o caso à agente e ela pediu que eu demonstrasse. Sem alternativa, eu dobrei as barras da calça e passei a fita adesiva por dentro, exatamente como havia lhe dito. Só então, ela pareceu satisfeita.
            A esta altura o agente que consultara meu passaporte no computador já o havia devolvido à mulher e, o outro agente que examinou minha mala também não tinha encontrado nada ilegal.
            Com meu passaporte em suas mãos a mulher me perguntou novamente qual era o motivo da minha viagem e, mais uma vez eu lhe disse que era turismo.
“Você tem muitos amigos aqui em Paris?” Ela perguntou querendo ver seu eu não iria me contradizer, porque eu já tinha lhe dito que não conhecia ninguém na cidade. Ainda bem que isso era verdade, porque fiquei sabendo depois que muitas vezes eles chamam pelos alto-falantes do aeroporto qualquer amigo ou parente do suspeito, alegando tratar-se de uma emergência, apenas para se certificarem que ninguém o aguarda.
            Quando ia me devolver o passaporte ela ainda fez uma última pergunta; “Qual é seu emprego no Brasil?”.
            “Sou professor de química”, lhe respondi e imediatamente percebi a besteira que fiz. Eu tinha acabado de pedir demissão, mas com certeza eles não teriam como saber disso, mesmo que tenham um ótimo serviço de inteligência, precisariam ter acesso a essas informações junto ao INSS, o que eu duvido muito que eles consigam. Todos nós sabemos o quão moroso é para se obter essas informações num órgão governamental, felizmente para mim, nesse caso. Eles poderiam exigir minha carteira de trabalho e dados da empresa para confirmar a informação diretamente com o empregador, mas apostei que não fariam isso, exceto se fosse para um visto de longa temporada, o que não era o caso.
            O problema também não era eu ser professor, o problema foi dizer que era professor de química (ninguém tinha perguntado!). Quando pronunciei essa palavra, a mulher imediatamente virou-se para seu colega e disse “chimiste”.
Houve um alvoroço dos agentes. Um deles falou pelo rádio e em segundos, mais alguns agentes chegaram. Um deles que ficou parado na porta carregava uma arma no coldre.
Voltei à estaca zero. Todas as perguntas que eu já me cansara de responder foram feitas novamente. Mais uma vez o agente consultava o computador e outros dois reexaminavam meus pertences.
            Depois de nada encontrarem e sem nenhum motivo para me manterem ali, após alguns minutos, que me pareceram horas, a sessão tortura terminou e enfim, o passaporte me foi devolvido.
            A mulher foi gentil, ajudou-me a amontoar meus pertences na mala e me agradeceu com um sorrisinho sarcástico; “muito obrigada. A França lhe deseja as boas-vindas!”.
            Aproveitei e lhe pedi informação de como chegar até o ponto de ônibus. Saí rapidamente de dentro do aeroporto.
            Do lado de fora conversei com uma moça francesa, ela também usava o cabelo curto como o da agente da alfândega, parece que as francesas gostam desse estilo ou pelo menos gostavam quando estive lá.
A moça estava voltando de um intercâmbio na Espanha e foi muito pronta em me ajudar. Como seguiria o mesmo caminho, ela me acompanhou e me explicou em detalhes o metrô que deveria tomar quando chegasse à estação e, em qual estação deveria descer.
            Quando desci do metrô senti um grande alívio. Agora eu já podia dizer que estava em Paris.


quinta-feira

Caviar com Salsicha


O que faz um estudante brasileiro, provinciano, quando tem a oportunidade de pôr os pés fora do país pela primeira vez? Bem, já tinha ido ao Paraguai, mas desculpem os paraguaios, isso não conta, não é mesmo?
Quando cheguei a Paris quis logo ir a todos os lugares, dos mais glamourosos aos mais bizarros e, é claro, experimentar todos os tipos de comidas e bebidas que encontrasse (ou que o bolso pudesse pagar!).
Eu tinha muita coisa para conhecer e experimentar. Prometi para mim mesmo que cada dia de minha estada na França experimentaria um vinho diferente. Não preciso nem dizer que não foi preciso nenhum esforço para pagar a promessa. Desconte-se aí, apenas o primeiro mês quando eu ainda não tinha uma residência fixa, mas nos outros meses, cada dia foi regado por um vinho diferente.
Alguns vinhos que provei eram maravilhosos, de uvas cultivadas em terroirs lendários, outros nem tanto. Tudo isso por um custo equivalente a alguns pãezinhos franceses aqui no Brasil que, aliás, de francês só têm o nome! É claro que eu não estou falando daqueles vinhos caríssimos, leiloados a preço de ouro. Estou falando de vinhos populares que na França são muito bons e baratos.
Em meio a essas idas e vindas experimentando vinhos, queijos, croissants e tantas outras guloseimas, uma amiga apareceu com a novidade; “uma ‘épicerie’ está com uma promoção de caviar pela metade do preço.” Segundo ela, era caviar legítimo por uma pechincha!
De início duvidei que fosse caviar verdadeiro, mas mesmo assim fui conferir. Nunca entendi de caviar, mas aquelas latinhas pareciam autênticas. Eram ovas de esturjão, kalouga ou algo parecido. “Caviar russo! Deve ser uma delícia!” Já fiquei imaginando o banquete.
O preço era muito sedutor, por isso peguei logo três latinhas, porque elas me pareciam muito pequenas. Lembrei que eu podia receber visitas no sábado e então seria um bom momento para degustar. “Pensando bem, talvez seja melhor levar cinco ou seis latas, não vai sair tão caro”. Só para garantir levei sete.
Lá fui eu, levando aquelas preciosidades para casa. Mal via a hora de experimentar!
Nessa época eu morava no segundo andar de um apartamento em Colombes, a menos de meia hora de trem, da Gare de Saint Lazare. O apartamento ficava ao lado da estação, era só atravessar a rua.
Subi rapidamente as escadas. Larguei as compras sobre a mesa e abri um vinho para degustar com o caviar. Com certeza não era o vinho mais adequado para a ocasião, mas era o que eu tinha. 





O passo seguinte era preparar o caviar. Aí estava um grande problema! Nunca tinha comido caviar e não tinha a menor idéia de como deveria ser consumido.
Abri uma lata e olhei para aquelas lindas ovinhas brilhantes e acinzentadas que me pareceram muito frágeis, “provavelmente já estão cozidas” foi o pensamento que me ocorreu. “Talvez eu deva acrescentá-las a algum prato do jeito em que estão”. Mas, difícil foi pensar na combinação ideal.
Na falta de idéia melhor resolvi incorporar ao que já estava programado para o jantar; salada de endívia, purê de batatas, frango assado (de domingo), pão e queijo cammembert. Aprendi com os franceses que em qualquer refeição nunca pode faltar pão nem queijo (conselho que acatei depois de passar por alguns constrangimentos, mas isso já é outra história).
Acho que o cardápio não estava tão bizarro para um sujeito que ia jantar sozinho, exceto aquelas ovinhas brilhantes que me pareceram alienígenas quando tentei incorporá-las ao purê. De certa forma me lembrava peixe, no entanto tinha sabor mais leve (um projeto de peixe que não deu certo?). Não foi uma boa idéia, pareceu um purê de batata com nozes e não me agradou.
Pensei que o caviar podia ficar melhor na salada, por isso experimentei com folhas de endívia, azeite de oliva e suco de limão siciliano. As endívias continuaram deliciosas, mas o caviar foi uma decepção!
Olhei para todas aquelas latas de caviar em cima do balcão; “o que fazer com elas? Talvez haja um jeito melhor de aproveitá-las!”.
Como sou muito teimoso, no dia seguinte fiz nhoque de batatas ao sugo e claro, caviar! Bem, o caviar se parecia com sagu, em meio ao molho sugo e, com um delicioso sabor de... (qual era o sabor mesmo? Acho que ainda não descobri!)
Nos dias seguintes ainda tentei criar outros pratos com o ingrediente especial, mas todos foram decepcionantes.
Uma semana depois ainda tinha quatro latas de caviar. Sem a mínima idéia do que fazer, um dia enquanto fazia cachorro-quente resolvi usá-las. Convidei alguns amigos, tão conhecedores de caviar quanto eu, e lá fomos nós; baguete italiana, salsichas cozidas, molho de tomate... e caviar!
O caviar deu um brilho especial ao cachorro-quente, mas no fundo parecia sagu de nozes com salsicha enlatada. Meus amigos até acharam interessante (ou fingiram bem), mas sinceramente, com ervilhas teria ficado melhor!
Caviar com salsicha pode ter sido um sacrilégio, assim como dar pérolas aos porcos, mas foi o modo que encontrei para aproveitar minha preciosa aquisição!
Hoje, passados alguns anos, até tenho alguma idéia de como combinar o caviar, mas confesso que perdeu muito do seu encanto. Acho que ainda prefiro as ervilhas.